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São Vicente
Oficina Portuguesa, Francisco Venegas (?)
Último quartel do século XVI
Pintura a óleo sobre madeira
Alt. 141 x larg. 58 cm
Provém da Igreja de São João Evangelista do Colégio
MASF296
A descrição que faz Henrique Henriques de Noronha do retábulo da antiga capela de São Sebastião (demolida no início do século XIX e situada onde hoje é o largo do Chafariz no Funchal), refere a existência de "belas laminas ou pinturas, S. Vicente mártir e S. Bento Abade”1, que ladeavam a figura de vulto de São Sebastião. Tudo indica que são estas as duas tábuas com temática e de dimensões idênticas que estão hoje no Museu de Arte Sacra do Funchal, vindas da Igreja do Colégio. Na verdade não eram originárias do Colégio, pois não constam dos seus inventários2, e é provável que tenham para lá transitado quando foi destruída a Igreja de São Sebastião em 1803.
A pintura que representa São Vicente de Saragoça, ou seja, São Vicente Mártir, é um interessante exemplo de diálogo entre os diversos géneros artísticos, que podemos observar tanto no traje como nos atributos do santo. São Vicente veste de diácono, com uma dalmática ricamente decorada, aberta aos lados e presa por cordão com borlas, que se enquadra na tradição dos padrões das sedas de brocados vindas sobretudo do Oriente e que são amplamente reproduzidas tanto na pintura como no estofado da escultura da época. Aliás, a técnica utilizada é afim da do estofado, separando o típico desenho de caules e estilizações florais por um traço negro e preenchendo os fundos com um tracejado que evoca os fios de ouro do tecido.
Segura na mão direita a palma recordando o seu martírio e na esquerda o modelo de uma nau, cujo decorativismo está bem mais próximo das peças de ourivesaria, sobretudo das navetas3, ou mesmo dos remates em talha, das reais formas de uma nau. Repare-se nos enrolamentos que apresenta tanto na quilha como no arranque dos castelos da popa e da proa, nas arcaturas cegas, em suma, na opção ornamentalista que consegue secundarizar os leves apontamentos mais realistas de tabuado do casco.
A figura apresenta-se a três quartos, ocupando a diagonal esquerda e deixando ver um ágil apontamento de paisagem de fundo, com um rio, a arcaria de uma ponte e arquitecturas à romana, destacadas de uma claridade que se esfuma à medida que subimos o olhar para o céu carregado de nuvens onde se entrevê uma auréola. Deste emolduramento de nuvens destaca-se o “rosto terçado”, a fitar-nos com a gravidade que insistentemente encontramos nos retratos deste período. O jogo de luzes recorre habilmente ora a contrastes ora a passagens de transição mais suave, de modo a sublinhar o descentramento da composição e a expressão do olhar.
É efectivamente uma pintura de boa oficina maneirista portuguesa dos finais do século XVI, e poderá colocar-se a hipótese de atribuí-la a Francisco Venegas4, castelhano radicado em Lisboa a partir da década de 70, de actividade documentada sobretudo nas duas décadas seguintes e formação sevilhana. Sevilha era então um cadinho onde se destacava o italianismo veiculado por Luís Vargas, de quem Venegas foi discípulo, e a presença flamenga mas, também italianizada de Pedro de Capaña. Neste São Vicente também se doseiam eclecticamente contributos diversos, oferecendo por um lado um certo recorte e cuidado de pormenor, mas por outro uma largueza de composição, um desenho seguro, um ligeiro sfumato nas carnações e uma leveza quase veneziana na paisagem. Tem em comum com as obras conhecidas de Venegas – como as do retábulo da igreja da Luz em Carnide e outras que lhe são atribuídas, como as do Mosteiro de Varatojo – a correcção do desenho, o porte elegante e alteado das figuras, o sentido da iluminação expressiva e fantástica e a desenvoltura da execução.
1 Henrique Henriques de Noronha, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal, C.E.H.A., 1996, p. 189.
2 Transcrito por Rui Carita em Colégio dos Jesuítas do Funchal, vol. II, Funchal, SRE., 1987.
3 Veja-se a título de exemplo a naveta datada de 1589 proveniente da Igreja de Câmara de Lobos, ou da Matriz da Ribeira Brava.
4 A ausência de documentação leva-nos a ficar pela conjectura. Sobre este pintor leiam-se os textos de Victor Serrão e José Alberto Seabra de Carvalho e Juan Miguel Serrera no catálogo A Pintura Maneirista em Portugal, Arte no Tempo de Camões, Lisboa, 1995.
Isabel Santa Clara, Das Coisas visíveis às invisíveis, contributos para o estudo da Pintura Maneirista na Ilha da Madeira (1540-1620), Vol.I e II, Tese de Doutoramento em História da Arte da Época Moderna, Universidade da Madeira, 2004.
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